Julgamentos com perspectiva de gênero
Adriana Manta é juíza substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) e mestranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É vice-coordenadora da EJud-5, onde dirige o Grupo de Estudos de Direito Antidiscriminatório.
Ela integra a Comissão Anamatra Mulheres, é pesquisadora, palestrante, autora de artigos e capítulos de livros. Adriana também é mãe de Arthur e Heitor.
Confira a entrevista que a magistrada concedeu à Secretaria de Comunicação Social do TRT-4, iniciativa em parceria com o Comitê de Equidade de Gênero, Raça e Diversidade.
A proteção à mulher na CLT foi inserida por leis de 1967 e 1999, especialmente. Por que surge a necessidade de publicação de um protocolo de julgamento sob a perspectiva de gênero, pelo CNJ, em 2021?
As vivências de homens e mulheres no mundo do trabalho apresentam contornos diferenciados, a partir da intersecção de marcadores sociais de opressão que estruturam a nossa sociedade alicerçada em padrões de hierarquia que decorrem da simbiótica relação entre o patriarcado, o racismo e o capitalismo.
Alguns fatores socioculturais como a divisão sexual do trabalho e a cultura da objetificação sexual feminina influenciam diretamente na inserção e permanência das mulheres no mundo do trabalho e geram situações que são vividas majoritariamente por mulheres.
Reconhecer que o Direito não é neutro, que as pessoas trabalhadoras não constituem uma categoria homogênea e que a inserção produtiva das mulheres é marcada pela sobreposição de assimetrias era um passo necessário para que a interpretação e a aplicação do Direito do Trabalho fossem capazes de concretizar o princípio da igualdade.
Quais situações expressam a violência de gênero e o machismo no Direito do Trabalho?
As vivências femininas no mundo do trabalho são marcadas por diversas violências e assimetrias. Entre elas, podemos destacar o assédio sexual a partir de condutas físicas ou verbais invasivas e não autorizadas, que gerem constrangimento, exposição ou violem a liberdade sexual da mulher; toques não autorizados em seu corpo; assédio moral; o “assédio moral materno” às trabalhadoras gestantes e mães; a dispensa discriminatória das trabalhadoras mães ao final do período de estabilidade gestacional; as diferenças salariais diretas e indiretas; comentários depreciativos ou hipersexualizados acerca de sua aparência (sabemos que no trabalho devemos levar em consideração a formação e competência da pessoa); a apropriação de seu trabalho por colegas homens; “piadas” machistas ou que tenham duplo sentido; a interrupção frequente de sua fala em reuniões.
E quais surgem com mais frequência nas ações judiciais?
O assédio sexual e o assédio moral baseado em questões de gênero, como a gestação e a maternidade. O TST divulgou em notíciaAbre em nova aba que os casos de assédio sexual representaram aproximadamente 4,5 mil processos ao ano em 2022.
A proteção legal e jurisprudencial afeta de alguma forma o acesso e a ascensão das mulheres ao mercado de trabalho?
O acesso, a permanência e a ascensão profissional das mulheres no mercado de trabalho são marcados por estereótipos de gênero arraigados na nossa sociedade. Podemos citar como exemplo a equivocada ideia social de que as mulheres não são boas líderes ou chefes por serem “menos racionais”, “mais emotivas” ou “instáveis emocionalmente”.
Além disso, a divisão sexual do trabalho reprodutivo, aquele trabalho de cuidado não remunerado exercido majoritariamente pelas mulheres gera o estigma de que as mulheres, ao se tornarem mães, não se dedicarão mais ao trabalho, para cuidar dos filhos.
Em 2021, o IBGE divulgou o relatório denominado “Estatísticas de Gênero – Indicadores Sociais das mulheres no Brasil (2ª edição)”Abre em nova aba , o qual apontou que em relação a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, as mulheres dedicaram quase o dobro de tempo que os homens: 21,4 horas contra 11 horas semanais.
O mesmo relatório apontou que no ano de 2019 a taxa de participação das mulheres com 15 anos ou mais de idade foi de 54,5%, enquanto entre os homens esta medida chegou a 73,7%, uma diferença de 19,2 pontos percentuais.
A diferença se acentua nos lares em que existem mulheres de 25 a 49 anos vivendo com crianças de até 3 anos de idade, onde o nível de ocupação foi de 54,6%, enquanto o dos homens, na mesma situação, foi de 89,2%.
Acredito que o Direito, através da proteção legal e da interpretação e aplicação do Direito em perspectiva de gênero, tem um papel fundamental na transformação dessa realidade social.
O relatório “Estatísticas de Gênero”, do IBGE (2019) indicou que a escolaridade das mulheres é maior, mas que os salários são cerca de 20% inferiores aos dos homens. O julgamento sob a perspectiva de gênero pode auxiliar a reparar essa situação?
É preciso entender que a diferença salarial pautada no gênero representa, além de um prejuízo patrimonial que gera o direito à equiparação salarial, uma conduta discriminatória e uma grave violação moral.
Além disso, quando se analisa tais questões com as lentes da perspectiva de gênero, é possível concluir que tal violação atinge não apenas aquela mulher que recebia um salário menor do que seu colega homem, mas contribui diretamente para que as mulheres, enquanto grupo social, permaneçam em condições de subalternidade e precarização no mundo do trabalho.
O Instituto Patrícia Galvão aponta que para 92% dos entrevistados as mulheres são as principais vítimas de assédio moral e sexual. De acordo com a mesma pesquisa, o percentual de pessoas que conhecem vítimas desse tipo de violência é de 58%. Como podem atuar os(as) magistrados (as), de acordo com o protocolo, para reparar ou minimizar as situações de assédio moral e sexual? E também a discriminação à gestante.
O primeiro ponto que precisamos considerar é que a nossa sociedade é extremamente violenta para as mulheres, em especial no que se trata da autodisposição sobre seus corpos e do livre exercício de suas sexualidades.
Estima-se que no Brasil ocorram 822 mil casos de estupro por ano (conjugação de dados da PNS e do Sinan)Abre em nova aba, desses apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia. Todas as mulheres vivem com medo de sofrerem violências sexuais nos mais diversos ambientes.
Além dessa importante pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, uma outra pesquisa feita pela Organização Think Eva (O CICLO, 2020) apontou que 47,12% das mulheres afirmavam ter sofrido assédio sexual no trabalho, através de práticas como solicitação de favores sexuais (92%), contato físico não solicitado (91%) ou abuso sexual (60%). Destas mulheres, uma a cada seis vítimas de assédio sexual pede demissão e 35,5% afirmam viver sob constante medo.
Embora as entrevistadas demonstrem perceber a ocorrência do assédio sexual, 50% narra a situação para pessoas próximas e 33% não faz nada. A pesquisa é elucidativa sobre a relação direta entre o baixo número de denúncias e os estereótipos de gênero: 78% acreditam que nada de fato acontecerá, 64% afirmam que as pessoas diminuem o que aconteceu, 64% têm medo de ser exposta, 60% se sentem descredibilizadas já que as pessoas dificilmente acreditam no que aconteceu, 41% acreditam que seriam culpabilizadas e 16% sentem que a culpa foi delas (eu mereci/eu pedi).
A utilização do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero leva à superação dos estereótipos de gênero, apresenta reflexões acerca do ônus da prova e do valor probatório da palavra da vítima em casos de assédio e violência contra a mulher no ambiente de trabalho.
Historicamente, as mulheres acumulam os cuidados com crianças e idosos com a jornada de trabalho. A perspectiva de gênero pode auxiliar na definição dos julgamentos que impliquem situações de saúde e segurança do trabalho?
Sim. As mulheres estão expostas a riscos laborais diversos dos homens. Há o preconceito de que o trabalho feminino é um trabalho “leve”, o que invisibiliza os esforços físicos exigidos em atividades como: limpeza e conservação, cozinha industrial e confecção, sendo concedida maior atenção a atividades com maior presença masculina como construção civil.
A perspectiva de gênero, além de repensar a ergonomia, também leva em consideração a diferença de tempo despendido pelas mulheres em atividades de cuidado não remunerado, qual seja, 10 horas semanais a mais que os homens, impactando diretamente na saúde física e psíquica das trabalhadoras mulheres.
A perspectiva de gênero na saúde e segurança do trabalho se norteia, portanto, pelo equilíbrio no meio ambiente de trabalho, que considere a variabilidade humana e promova a isonomia de direitos e a proteção a ambos os sexos.
É muito cedo para falar em efeitos da Lei 14. 611/2023, que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios?
Em sua redação original, de 1943, o art. 5º da CLT já previa que “a todo trabalho de igual valor corresponderá salário igual, sem distinção de sexo”.
A Lei 14. 611/2023 contém uma nova roupagem de enfrentamento a um antigo problema que a sociedade brasileira, a despeito da legislação trabalhista, da Constituição Federal de 1988 e das normas internacionais de Direitos Humanos, ainda não deu conta de resolver.
A Lei endurece sanções e apresenta meios concretos para se observar se, na prática, há ou não distinção remuneratória entre homens e mulheres, com a obrigação de publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados.
Entretanto, ainda é cedo para se aferir os efeitos concretos da Lei 14. 611/2023 através de dados estatísticos.
Sob o ponto de vista da equidade de gênero e do combate a esse tipo de discriminação e violência, o que a senhora percebe como principais desafios para a sociedade brasileira? E, especialmente, para o mundo do trabalho?
A nossa socialização histórica e culturalmente parte do exercício do poder a partir da subjugação de outras pessoas ou grupos de pessoas. Seria necessária uma revolução ética em que o afeto e a cooperação passassem a ser a base da nossa sociedade, o que, infelizmente, beira a utopia.
Acredito, contudo, que o combate efetivo às diversas violências contra as mulheres, a mudança de paradigma acerca do valor social das mulheres e o reconhecimento social dessa opressão sistêmica de gênero podem ser bons passos rumo a transformações possíveis.
No mundo do trabalho, para além do combate cada vez mais forte ao assédio sexual, ao assédio moral e às discriminações, penso que a licença parental pode ser um passo decisivo para a equidade de gênero, além de representar um avanço para a homoparentalidade e para a transparentalidade.
Acredito em um modelo legislativo que preveja a concessão de iguais 180 dias de licença parental para ambos/as a serem gozados no primeiro ano de nascimento ou de adoção da criança, de maneira concomitante ou não (à escolha da família), podendo ser fracionado em até dois períodos.
Por: Tribunal Regional Federal da 4ª Região
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